A morte do SD Yago | A tragédia e a doença no espírito dos policiais do DF

POR: LUIZ FERNANDO RAMOS AGUIAR

Não é de hoje que temos gritado sobre a morticínio de policiais no Brasil, as causas são as mais diversas, desde os confrontos com o crime organizado até falta de equipamentos de segurança ou armamentos adequados. Mas de todos os males que ceifam a vida dos profissionais de segurança pública, sem dúvidas, o mais cruel e incompreensível é o suicídio. A tragédia individual daquela vítima se espalha, alcançando uma rede de pessoas ligadas as corporações, família, colegas de trabalho, amigos civis e a comunidade e atendida por ela. E neste caso a tragédia foi ainda mais impactante, envolvendo a perda de um jovem policial. A primeira resposta é sempre culpar os serviços de saúde das corporações, mas sempre se esquece de um fator fundamental quando o assunto é este, a esfera espiritual que envolve o serviço policial.

O caso envolvendo a morte do soldado Yago Monteiro Fidelis, vitimado por um companheiro de farda que, logo após o ato, tirou a própria vida, não foi diferente. Ao contrário do que acontece quando uma personalidade ou subcelebridade é acometida por uma tragédia semelhante, nenhum conteúdo foi produzido para trazer algum conforto aos envolvidos. Não são produzidos vídeos emocionantes, não são realizados minutos de silêncio ao final de telejornais e as ONGs não se manifestam. Mesmo com a constatação de que os fatos dessa natureza não são raros, os membros das forças de segurança não são cogitados para programas de apoio, campanhas educativas e, como sempre, dependem exclusivamente do esforço de suas próprias corporações e do seu círculo mais próximo de pessoas. Os fatos são sempre narrados de maneira seca, desligados de sentimentos, condolências ou dos impactos daquele ocorrido, com raras exceções, parece apenas mais uma notícia das sangrentas páginas policiais.

Mas porque temos visto um aumento na quantidade de suicídios entre os policiais? Quais os motivos que levariam um profissional, com estabilidade, carreira e, no Distrito Federal, com um bom salário a praticar uma ação tão extrema?

O trabalho policial por si só traz uma carga alta de estresse e pressão. O profissional lida diariamente com o que a de pior na sociedade. O policial passa toda sua jornada de trabalho resolvendo conflitos, deparando-se com episódios de violência, covardia e crueldade. Essa carga acaba se acumulando com o passar dos anos e é preciso que a pessoa nesse trabalho tenha alguma válvula de escape, caso contrário essa toda a tensão pode gerar efeitos colaterais perigosos, tanto para o profissional quanto para aqueles que estão a sua volta.

De maneira quase instintiva não é incomum que os profissionais das forças de segurança procurem atuar em funções que tragam algum reconhecimento social, principalmente na forma de prestação de serviços à comunidade. Costumo dizer que raramente encontraremos policiais que, na vida civil, não estejam engajados em alguma função ou causa dessa natureza. De forma geral eles atuam em seus condomínios como síndicos, são voluntários em projetos sociais, entusiastas de algum esporte ou trabalham como lideranças ou colaboradores em igrejas e instituições religiosas. Como era o caso do soldado Yago, reconhecido em sua paróquia, na cidade Santa Maria, como uma referência. Sua morte prematura foi um grande trauma para aqueles que conviviam e desfrutavam de seu comprometimento e dedicação à comunidade católica da cidade.

Mas qual o motivo que levam os policiais a buscar reconhecimento social além dos serviços que prestam cotidianamente à população? A missão de servir e proteger, mesmo com o risco da própria vida, deveria ser suficiente para gerar um sentimento de reconhecimento e valor. Entretanto, vivemos em tempos sombrios, onde aqueles que deveriam ser reconhecidos pelo valoroso trabalho que desempenham, são desprezados, discriminados e tratados como cidadãos de segunda classe, pelas pessoas que juraram defender. Claro não seria justo dizer que todas as pessoas se comportam assim, mas os que possuem o poder de disseminar as narrativas e moldar o pensamento de grande parte da sociedade, se dedicam com fervor a desconstrução da imagem das forças policiais e de seus agentes.

Nos ambientes intelectuais e acadêmicos os policiais são retratados, basicamente, como selvagens, aqueles que saem de suas casas para matar negros e pobres. A narrativa é amplificada pelos meios de comunicação tradicionais que em suas matérias e reportagens, hegemonicamente, tratam os policiais como não humanos, violentos e dedicados ao morticínio de pessoas inocentes. Como se não bastasse os produtos culturais, como novelas, livros, peças de teatros e filmes retratam os policiais, quase sempre, como pessoas desprovidas de nuances morais, contradições ou ambiguidades. Que praticam a corrupção e a violência com deleite. Ou então os personagens são caricaturas, de uma olhada no Sargento Peçanha do grupo Porta dos Fundos. Nada de errado, caso houvesse uma variedade de produções e produtos que mostrassem outras construções, mas quando se tem um só tipo de discurso se cria no imaginário da população um quadro que não é desfeito facilmente.

Mas talvez a face mais ingrata desse cenário seja o comportamento dos membros do judiciário. O policial tem que acompanhar diariamente os piores e mais perigosos marginais serem beneficiados por todo tipo de política de garantismo, que transforma seu esforço diário em um trabalho de Sísifo, um enxugar gelo, um suplício infinito. Isso quando o profissional não é humilhado, tratado como bandido em audiências e julgamentos.

Todos estes fatores contribuem para a formação de um ambiente tóxico para a prática do serviço policial. Aumentando os fatores de estresse, que já são inerentes a natureza do trabalho, elevando a níveis surreais a necessidade de capacidade de resiliência, equilíbrio emocional e motivação para o trabalho dessa classe profissional. Acho muito pouco provável que profissionais de outras áreas como advogados, médicos ou jornalistas conseguissem exercer suas atividades se tivessem que operar sob condições semelhantes.

A resposta a toda essa gama de complexidade é simplista e, isoladamente, ineficaz. O cuidado com saúde mental dos policiais é fundamental, contudo, é apenas um dos aspectos que devem ser abordados para prevenir episódios como este que vitimaram o soldado Yago. Os gestores não podem fazer muita coisa em relação ao comportamento da intelectualidade, da mídia ou do judiciário. Apoiar e ajudar os policiais a encontrar atividades que lhes forneçam o reconhecimento social pode ajudar, mas não é suficiente, afinal todos querem ser reconhecidos por sua capacidade profissional em sua principal área de atuação, sem contar que os problemas envolvendo essas atividades podem acabar se somando a carga das corporações.

Quando se trata do autoextermínio estamos lidando com questões que vão além da imanência, que extrapolam o ambiente do ordinário e do concreto. É o encontro precoce e violento com a eternidade, desencadeado por um sofrimento tão profundo que faz com que aquela pessoa veja na morte a única alternativa para aliviar a dor. E, infelizmente, nenhum medicamento ou terapia pode, como únicas medidas, trazer a cura. Mesmo que sejam condutas fundamentais, elas precisam estar aliadas a conhecimentos e cuidados que proporcionem ao profissional de segurança enxergar um valor superior para suas angústias e sofrimento.

Em razão de questões como essa é que a legislação militar, por exemplo, define como obrigatória a assistência religiosa, exercida nas polícias militares por suas capelanias. Para que o uma pessoa possa lidar com ambiente hostil, o reconhecimento social e o equilíbrio psíquico não são suficientes. É preciso que o policial encontre em seu trabalho muito mais que um emprego, uma carreira ou o sustento de sua família. Para suportar as pressões é fundamental que se encare o trabalho como o que ele realmente é, uma missão, um chamado com efeitos para além dessa vida. A perspectiva da imortalidade da alma e o sentido de sacerdócio do dever só podem ser alcançados por um conhecimento que está além da psiquiatria ou do mero reconhecimento social. Proteger nossos policiais é mostrar-lhes que mesmo que no momento ninguém entenda seu ministério, sua recompensa está muito além disso. Dar um sentido eterno para um trabalho duro e, muitas vezes, ingrato. O sacrifício em favor do próximo não pode ser recompensado pelas melhores coisas deste mundo, nenhum salário pode pagar o risco diário, nenhuma promoção ou função será suficiente para trazer paz a alma. Somente quando o profissional de segurança pública enxerga em seu trabalho uma missão maior que sua própria vida pode encarar os riscos, o estresse e o descaso com a certeza de que está cumprindo o propósito de sua existência.

O materialismo moderno nos faz ignorar a esfera espiritual, parte fundamental de cada indivíduo, e quem levanta argumentos como estes acaba taxado de atrasado, supersticioso ou qualquer outro adjetivo que denote falta de inteligência. Contudo, ao mesmo tempo que temos visto nossas tropas negligenciarem e abandonarem esses aspectos, que sempre foram a base de nossa cultura, acompanhamos o aumento de surtos emocionais, da dependência química, das famílias desfeitas, dos casos de depressão e ansiedade e, mais grave, dos suicídios.

O soldado Yago foi morto porque talvez seu colega não conseguisse enxergar mais um propósito em sua vida, sentia uma dor emocional tão profunda e desesperadora que a única saída encontrada foi a morte. Talvez nunca tenhamos a resposta de porque ele tirou a vida do Yago, antes de acabar com a própria. E a dúvida talvez seja um dos maiores dramas do suicídio. Mas uma coisa é certa abandonar nossos policiais a frieza do materialismo é catalisar os ingredientes que fazem parte de tragédias dessa natureza.

Que Deus possa consolar as famílias vitimadas nessa tragédia. E que a morte do soldado Yago nos serva para lembrar que desmantelamento da alma de um policial pode gerar tragédias que ceifam até nossos melhores homens.

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